O combate à corrupção no Brasil depende mais do cumprimento das leis vigentes do que da produção de novas leis. Neste sentido, o interesse e a participação populares são relevantes…
por: Roberto Muller Filho / Liliana Lavoratti
foto: Divulgação

“Temos uma ideia deturpada de participação popular ou cidadã porque parece que isso tem que acontecer todo dia e não é assim”, afirma Justino em entrevista ao DCI. “Não temos um pleno exercício de cidadania. Mas a Lei da Ficha Limpa é um exemplo de que a pressão político-social funciona sobre as instituições. Elas mais do que funcionam. Muitas vezes não podem ser nem contidas”, acrescenta.O combate à corrupção no Brasil depende mais do cumprimento das leis vigentes do que da produção de novas leis. Neste sentido, o interesse e a participação populares são relevantes. Essa é a opinião de Gustavo Justino, advogado, jurista, professor e consultor de gestão pública.
De acordo com o especialista, a corrupção no País é tão antiga que precede o surgimento do Estado brasileiro e o próprio descobrimento.
Justino afirma que a redução da corrupção não é apenas proporcional ao crescimento do Poder Judiciário, mas do aumento e da consolidação das instituições políticas e democráticas.
“Os três Poderes deveriam fazer sua tarefa constitucional. O Legislativo faz pouco e o Judiciário vem fazendo. O Judiciário caminha no vácuo entre os -Poderes. Mas no século XXI a hegemonia ainda é do Executivo”, completa.
Justino defende ainda uma reforma política no Brasil. “O sistema político precisa ser reformado não só pela discussão do voto distrital, lista fechada ou lista aberta. Mas como se dá o controle do exercício da função parlamentar, que deve ser um controle social”, afirma. Segundo ele, a questão da imunidade é reserva ainda de autoritarismo.
O jurista prevê ainda que o julgamento do Mensalão vai ser emblemático por se tratar de um precedente importantíssimo no combate à corrupção no País. “O Poder Judiciário vai ter que dar orientação, resposta para o povo, mesmo em caso de absolvição.”
A seguir, a entrevista de Gustavo Justino.
DCI: A corrupção, tão antiga quanto o País, pode ser combatida com leis?
Gustavo Justino: Se a corrupção for tão antiga quanto o País, precede o Brasil, o descobrimento e a consolidação das instituições políticas e democráticas. A origem da corrupção está na confusão entre o público e o privado: de tratar o público como se privado fosse. É o pecado original. Quando a organização política-estatal do Estado moderno começa a se consolidar, no século 18, surge a especialização das funções – legislativa, executiva, jurisdicional – e depois o exercício do poder. Antes, tínhamos o poder concentrado no monarca. A vontade do monarca era a vontade do Estado. Portanto, manifestação sobre a vontade do Estado era coletiva subjetiva. Acredito que o combate à corrupção no País esteja mais ligado ao cumprimento das leis vigentes do que à simples produção de leis. Neste sentido, o interesse e a participação populares seriam relevantes. Uma de minhas linhas de pesquisa na academia é a legitimação da Administração Pública por meio da internalização da democracia e da participação ativa da sociedade.
DCI: A Revolução Francesa representou alguma mudança?
GJ: Com a Revolução Francesa, outra concepção de público e privado – que nos inspira – vai promovendo a evolução do Estado para um modelo burocrático, ocorrendo de forma gradativa. Do século 18 até o início do século 20, nós tínhamos um modelo de Estado Patrimonialista, com alguns reflexos, por exemplo, a questão da França com o modelo napoleônico, já mais forte, ainda autoritário, focado na centralização do poder, na disciplina, no poder hierárquico. Aos poucos, do Estado Absolutista para cá, o exercício do poder estatal passa a encontrar limites, passa a ser controlado. E, nesse sentido, começa a haver uma preocupação com o exercício do poder, que passa a ser condicionado, limitado. Sobretudo, começa uma separação entre público e privado. É nesse modelo patrimonialista que está a origem da corrupção, tanto que não se falava em corrupção porque antes o poder era exercido de uma forma muito subjetiva e patrimonialista. Depois do modelo burocrático e gerencialista, bem mais recente, e no modelo de governança pública, que é o de agora, percebemos que a questão ainda é o exercício do poder, a separação do público e do privado, limitação, condicionamento do exercício do poder, a questão da responsabilização do agente político é muito forte.
DCI: A corrupção precede o Estado brasileiro?
GJ: Precede a origem do Estado moderno e acompanha sua evolução. A questão é: quando o poder começa a ser limitado, condicionado pelo direito, pela lei, pela Constituição e pelo próprio Estado; quando há uma especialização de funções, o que temos até o Iluminismo? Separação de funções, especialização de função e um poder controlando o outro. Temos momentos na história de predomínio dos poderes. No século 19, havia a hegemonia do Poder Legislativo. O parlamento surge ali e personificava o poder porque estabelecia limites. No século 20, temos a hegemonia do Poder Executivo. E é nessa hegemonia que os excessos acabam acontecendo e os outros poderes não limitam nem condicionam o exercício do Poder Executivo.
DCI: No século XXI, a hegemonia ainda é do Executivo?
GJ: Sim. Embora exista um forte crescimento do Poder Judiciário. A força está no Executivo porque tem “a chave do cofre”. E isso significa muito na relação entre poderes. Mas temos a ascensão do Judiciário. Expressões como judicialização das políticas públicas, ativismo do Judiciário e governo de juízes indicam a ascensão de um poder que foi o último a ser criado na história. Poder esse que a população mais confia. Eu não diria que a população não confia no Executivo, mas confia pouco. A população vem confiando menos no Legislativo, ela depende do Executivo. É diferente, mas confia no Judiciário.
DCI: Mas o ex-presidente Lula e a presidente Dilma têm aprovação elevada.
GJ: Sim, mas pela dependência. Essa é uma característica muito brasileira.
DCI: A redução da corrupção é proporcional ao crescimento do Poder Judiciário?
GJ: Não só do Judiciário, mas do aumento e da consolidação das instituições políticas e democráticas em geral. No aspecto da organização do Estado, tanto o Legislativo quanto o Judiciário deveriam fazer a sua tarefa constitucional e não fazem. O Legislativo faz pouco e o Judiciário vem fazendo. A questão é matizar essa questão do Judiciário. O excesso de controle [do Judiciário] é uma realidade e é justificado. O Judiciário caminha no vácuo entre os poderes.
DCI: No Brasil, a noção de cidadania é precária. Até que ponto pode ser dar o controle social?
GJ: A cidadania tem que ser ensinada. Tínhamos uma certa tradição, sobretudo no período pré-democratização da Educação Moral e Cívica, que era calcada nessa ideia de patriotismo, de nacionalismo, tipicamente militarista. Não surtiu efeitos. A redemocratização no Brasil tem um símbolo que é a Constituição cidadã, de 1988, focada no direito dos cidadãos e garantias. Ela cria nova ordem jurídica, mas não cria cultura, que é uma questão importante. Os sentidos de cidadania foram ampliados. Há um catálogo de direitos fundamentais, ainda há um certo protagonismo do Estado na efetivação desses direitos, o que pode gerar a dependência, da forma como isso é realizado. E aí entra a questão dos governos populistas, não só no Brasil, mas na América Latina. A base de cidadania se ampliou, não só pelas instituições como, por exemplo, no caso dos Tribunais de Contas.
DCI: Precisamos de emancipação em termos de cidadania?
GJ: Não gosto de dizer que não temos uma cultura de cidadania. Ainda precisamos de uma emancipação política. A cultura cívica existe, mas ela nunca teve espaço para se colocar. Nos momentos em que isso ocorria, vinha uma revolução, um governo mais autoritário e aí ela se fechava. Não gosto de dizer que o brasileiro não atua. Talvez a nossa cultura cívica seja recente e o Estado – isso é importante – tem um papel de emancipação dessa cultura cívica no sentido de criar políticas de emancipação.
DCI: Nesse contexto se insere a Lei da Informação?
GJ: Me emociono quando penso na Lei de Informação porque não há combate à corrupção se não houver um sistema de informação pública. Como a sociedade vai controlar a gestão pública se não tem informações? E não é só informação no Diário Oficial, a publicação oficial do ato ou estar na Internet. É como isso é explicado para a população. E o que está acontecendo é o instituto participativo: o instituto da audiência pública, consulta pública, conferências nacionais, os conselhos de gestão e de políticas públicas. Tudo isso significa participação popular. Temos prática, mas não temos teoria – estudamos uma teoria – mas não temos uma legislação adequada à efetivação desses instrumentos, mas eles existem e a prática também existe. Existe uma conferência nacional em desenvolvimento organizada pelo Ministério da Justiça que é da Conferência Nacional de Transparência e Controle Social, a ConSocial. É instrumento participativo para discutir formas de combate à corrupção e melhoria da transparência do setor público envolvendo estados, municípios e a União com discussões locais e nacional.
DCI: Quando menciona a importância do Legislativo no combate à corrupção não fica a impressão de que é “o cabrito tomando conta da horta”?
GJ: A questão é importante: o ordenamento jurídico cria deveres para o parlamentar. Qual o foco da atividade de um parlamentar o Brasil? Muitos, aliás, se elegem para ter o que? A imunidade parlamentar. Essa é a chave. O sistema político precisa ser reformado por várias razões. Não é só a discussão do voto distrital, lista fechada ou lista aberta. É como se dá o controle do exercício da função parlamentar, que deve ser um controle social. A questão da imunidade, por exemplo, é reserva ainda de autoritarismo.
DCI: Não deveriam ter imunidade?
GJ: Dessa forma, não. No Brasil, não dá para tirar do serviço público, no qual a questão é a mesma, o vínculo com aquele funcionário que não trabalha. Ainda que a Constituição tenha concebido a Emenda 19, que acaba permitindo avaliação de resultados, na prática não ocorre. Os sindicatos dos funcionários públicos são fortes. Na Constituinte e no governo federal é forte. Não é que eles não permitem, mas são um pouco contrários à avaliação. Isso é disputa de poder. A professora espanhola Suzana Galerra Rodrigo, da Universidade Rei Juan Carlos, diz que o modelo legislativo precisa ser adequado às novas instituições democráticas e o Brasil é conhecido como o País onde isso mais avança.
DCI: Temos a reforma política a ser feita. Como mudar o quadro?
GJ: Um sistema de informação pública como esse que vai ser inaugurado no País não será suficiente se não for acompanhado da reforma política. Essa constelação de pequenos partidos, uma fragmentação no sentido do próprio poder político, mas uma fragmentação do sentido de política. Mas é aí que entram os interesses políticos.
DCI: O que precisa ser mudado?
GJ: O sistema partidário, o presidencialismo, para começar. E só com muita pressão. Tem que haver uma pressão social e não é porque seja este parlamento e esta Legislatura. O político não vai querer mudar. Essa é uma cultura arraigada, foi criado assim e quem chega, com algumas exceções, acaba se comportando da mesma forma senão ele não é eleito. Alguns pontos que teriam de ser mudados: a questão do voto distrital. Tem que ser em lista aberta ou fechada. Não temos controle social de mandato porque esquecemos. O voto distrital misto seria mais adequado à realidade brasileira porque a mudança não seria radical. Seria uma coisa importante: a questão do financiamento das campanhas políticas.
DCI: Há algum avanço no Brasil em relação ao aperfeiçoamento da democracia representativa e democracia participativa?
GJ: Estamos muito bem e avançando. A Lei da Ficha Limpa, por exemplo, é um resultado dessa atuação democrática. Temos uma ideia deturpada de participação popular ou cidadã porque parece que isso tem que acontecer todo dia e não é assim. As intervenções da sociedade vêm, mas precisam ser arranjadas, precisam emergir. Quando emergem, acontecem com força. Não temos um pleno exercício de cidadania. Nisso, eu concordo. Mas há exemplos, a Lei da Ficha Limpa é um exemplo de que a pressão política-social funciona sobre as instituições. Elas mais do que funcionam. Muitas vezes não podem ser nem contidas.
DCI: O fato de o Mensalão ter chegado ao Supremo Tribunal Federal vai na mesma linha?
GJ: O julgamento do Mensalão vai ser emblemático. Acompanho as discussões. Quando eu digo emblemático é um precedente importantíssimo no combate à corrupção no País. Não digo tanto que o resultado deve ser a punição. Mas o Poder Judiciário vai poder se debruçar, vai realizar a atividade jurisdicional no sentido de se saber se estão ou não presentes os requisitos de punição de cada um dos envolvidos. E mais: vai ter que dar orientação, resposta para o povo, mesmo em caso de absolvição. É muito mais: uma atuação do Poder Judiciário forte, que intervém de forma adequada e que acaba auxiliando – aliás, tem um papel, uma liderança – na consolidação das instituições democráticas no sentido de se dizer como a função pública deve ser exercida.
Fonte: DCI